Imigração germânica ou invasão germânica?
Hoje é um dia muito importante para a história do Brasil, na proporção em que ela é ocultada da história do Sul do país, em especial da história de Santa Catarina.
Indígenas além da Amazônia
Quando pensamos em indígenas, certamente imaginamos os povos do Xingu, a Amazônia, mas a verdade é que o território inteiro do Brasil era habitado por povos indígenas. E nosso estado tem capítulos especiais nisso, porque aqui viviam os chamados povos do tronco linguístico Macro-Jê, que eram completamente distintos do tronco Tupi e Guarani.
A grande nação Tupi ocupava todo o litoral do país, do Nordeste ao Sul. Os Guaranis ocupavam o extremo Oeste do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Já os povos Macro-Jês ocupavam lugares mais interioranos.
Os povos originários do Vale
Por isso, aqui em nossa região do Vale, viviam os Kaingang (Planalto Norte) e Xokleng, também chamados de Laklãnõ (Vale do Itajaí e Serra do Mar), e os Mbya e Ñandeva, da nação Guarani, na região do Morro dos Cavalos (Palhoça), Tekoá Marangatu (Imaruí) e Tekoá Yvyty Guaçu (Biguaçu).
Dizimação e resistência
O mais triste desta história é que os povos Tupinambá ou Carijó, considerados os indígenas mais pacíficos entre toda a nação indígena, foram totalmente dizimados ainda na invasão portuguesa e no século seguinte. Eles viviam na região que iria ser habitada posteriormente pelos Mbya e Ñandeva.
Os povos do tronco Jê, que viviam nesta região há 4 mil anos, só foram sofrer com a migração de povos europeus, justamente com a chegada dos alemães e italianos no século XIX, principalmente a partir de 1850, quando os exploradores começaram a adentrar ao interior.
Colonização e genocício
O Governo Imperial do Brasil incentivava a colonização europeia no Sul e começou a distribuir terras indígenas como se ninguém vivesse ali. Quando os imigrantes (sobretudo alemães), começaram a avançar sobre as matas do Vale do Itajaí, entraram em conflito direto com os Xokleng, que tentavam defender seu território milenar. São parentes dos povos Kaingang (PR, SC, RS e SP) e Xavante (MT), compartilhando elementos culturais e linguísticos. Eram nômades e viviam da caça, pesca e coleta. A espiritualidade era profundamente conectada com a natureza e os espíritos da floresta.
O governo de Santa Catarina passou, então, a contratar matadores profissionais, chamados de “bugreiros”, para caçar, matar ou capturar indígenas. Um dos mais conhecidos foi Fritz Plaumann (não é o naturalista), que atuou em massacres e raptos de crianças indígenas no início do século XX.
Em 1850, estima-se que havia 5.000 Xokleng nas regiões onde hoje estão Blumenau, Pomerode, Timbó, Indaial, Doutor Pedrinho, Rio do Sul e José Boiteux (onde hoje está a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ), mas, 60 anos depois, eles foram reduzidos a menos de 100 sobreviventes.
Sequestro, escravidão e apagamento cultural
As crianças sequestradas eram entregues ou vendidas a famílias europeias, recebiam nomes cristãos e eram proibidas de falar sua língua. Eram criadas como escravas, sem nenhuma remuneração, sem liberdade, sofriam castigos físicos e emocionais, não podiam sair da propriedade onde viviam, e muitas eram usadas para servidão e exploração sexual.
Reconhecimento tardio
Foi somente com a Constituição de 1988 que os indígenas tiveram seus direitos reconhecidos. Ela garantiu aos povos indígenas: direito à terra, à cultura, à língua, à educação diferenciada e o fim do regime tutelar pela FUNAI, que, de 1940 a 1988, apesar das políticas de proteção dos povos indígenas da ação dos invasores europeus, os impedia de votar, comprar, vender ou sair da terra demarcada sem permissão.
O orgulho europeu e o esquecimento indígena
Quando olhamos para o passado, percebemos quão problemático e cruel é, em 2025, termos moradores de Pomerode exaltando o orgulho que sentem de sua cor, de sua “raça”, de suas origens, ao mesmo tempo que ignoram ou não se importam em entender que, em nosso passado, existe uma história de invasão, de violência, de genocídio, de dominação.
A ciência já comprovou que não existem “raças humanas” no sentido biológico — todos os seres humanos pertencem à mesma espécie, Homo sapiens, e compartilham mais de 99,9% do DNA.
Preservar cultura, mas encarar a história
Devemos, sim, preservar costumes bons, como a culinária, a arte, o idioma, mas precisamos conhecer a história para entendermos que a trajetória que nos trouxe até aqui não deveria ser um motivo de orgulho.
Costumamos ouvir sobre o povo trabalhador, sobre como colonos europeus enfrentaram muitos desafios ao chegarem nesta região, mas, enquanto hoje temos mais de 7,6 milhões de habitantes no estado, são apenas 21.541 indígenas, que ainda sofrem com violência e ainda lutam por pequeníssimas áreas de terra.
Para você ter uma ideia, 99,3% do território do Sul do Brasil são de terras não indígenas, enquanto os habitantes que aqui viveram por mais de 4.000 anos ficaram com 0,7% da área total da região Sul.
O marco temporal e o retrocesso legal
O marco temporal é uma tese jurídica que estabelece que os povos indígenas só teriam direito à demarcação de terras que estivessem sob sua posse ou disputa contínua desde a promulgação da Constituição Federal em 5 de outubro de 1988.
Essa teoria foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro de 2023, que decidiu, por 9 votos a 2, que a data de 1988 não deve ser usada como critério para definir a ocupação tradicional das terras indígenas.
Apesar da decisão do STF, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/2023, que restabelece a tese do marco temporal, permitindo a demarcação de terras indígenas apenas para aquelas que estivessem sob posse ou disputa contínua desde 1988.
E como vimos, como uma população reduzida de 5.000 indivíduos para 100 poderia lutar por suas terras? Cruel, abjeto e repugnante.
O papel dos representantes políticos
Obviamente, não eram necessárias pesquisas, mas, para constar, o deputado de Pomerode, Gilson Marques, votou a favor do requerimento de urgência do Projeto de Lei 490/2007 e também votou a favor do texto-base do PL 490/2007, que foi aprovado na Câmara dos Deputados em 30 de maio de 2023, com 283 votos favoráveis e 155 contrários. E foi justamente o povo Xokleng que estava no centro dessa disputa.
STF sob ataque
Atualmente, o STF está em processo de conciliação sobre a aplicação da lei, com discussões em andamento sobre os impactos dessa legislação e a possibilidade de sua revisão ou declaração de inconstitucionalidade.
É por esta situação e outras que esses mesmos políticos atacam sistematicamente os ministros do Supremo Tribunal Federal.