A verdadeira história da Osterfest de Pomerode
Quando passamos pela vida apenas como observadores, não nos damos conta de que o passado está em constante mudança. Ainda não inventamos uma máquina do tempo que mude os fatos do passado, mas o alteramos quando mudamos a narrativa.
Michel Foucault (1926–1984), filósofo e historiador francês, estudou como o poder, o saber e o discurso moldam a sociedade. Em A Arqueologia do Saber (1969), ele elabora sobre o fato de que a percepção do passado não é algo fixo, mas sim reinterpretado constantemente conforme o presente muda.
A história não é a tentativa de reconstituir o que os homens disseram ou fizeram no passado, mas sim o que tornou possível que tivessem dito ou feito isso.
Ao realizar pesquisas e entrevistas sobre a história da Osterfest, que em parte eu já conhecia por vivenciá-la — lembrando que é um evento que tem apenas 17 anos —, ouvi afirmações como:
— Quem criou a Osterfest foi a AVIP.
Nem mesmo a organização atual da Osterfest faz essa afirmação, mas muitas personagens desta história foram apagadas, e é isso que queremos resgatar.
A verdadeira origem
É importante dizer que a tradição da Osterbaum (Árvore de Páscoa) não era comum entre os imigrantes que vieram ao Brasil, oriundos da região histórica da Pomerânia, hoje ocupada em parte pela Alemanha e em parte pela Polônia.
A cultura de decorar galhos secos com casquinhas de ovos é mais tradicional no sul e sudeste da Alemanha (Baviera), muito distante dos imigrantes predominantemente do norte que vieram ao Brasil.
Na minha infância, minha avó tinha um apego profundo com a comemoração dessas datas festivas religiosas, como a Páscoa e o Natal. Aprendi desde muito pequenino como quebrar os ovos para aproveitar as casquinhas. O costume era deixá-las na janela para secarem e depois as guardávamos para a Páscoa, quando cada um pintava as suas casquinhas — assim sabíamos de quem era cada cesta, quando tínhamos que procurá-las no jardim. As casquinhas eram preenchidas com amendoim caramelizado. Não me recordo de ter ganho ovos de Páscoa na minha infância, porque sempre foram muito caros. A alternativa eram as barras de chocolate mesmo.
Criação e Resgate Cultural
A ideia de trazer para Pomerode essa tradição que é alemã, mas não era tradicional entre os imigrantes que aqui vieram, partiu de uma iniciativa da Secretaria de Turismo e Lazer de Pomerode/SC, na administração da secretária Gladys Dinah Siewert, entre os anos de 1998 e 2006, para incrementar o evento que recebeu o nome de Ostermarkt.
Rejeição à Ostermarkt
Quem vem a Pomerode prestigiar a Osterfest mal sabe que, quando a secretaria de turismo resolveu colocar o primeiro galho seco com casquinhas penduradas na rua, a iniciativa virou motivo de piada para muita gente. A cultura refratária dos descendentes de alemães-brasileiros não costuma acolher com ternura novas ideias. A Secretaria de Turismo não deu importância às críticas e criou sua Feira de Páscoa (Ostermarkt). A feira acontecia na Praça Jorge Lacerda, no centro da cidade. Uma matéria de quase 20 anos nos mostra como era a estrutura:
No ano de 2006, a tradicional feira de páscoa organizada pela Secretaria de Turismo de Pomerode, acontecerá no mês de março nos dias 19 e 26 e em abril, nos dias 02 e 09 (Domingos) das 10 às 17 horas, na Praça Jorge Lacerda. Em todos os domingos, das 10 às 12 horas, a artista plástica Silvana Pujol realizará demonstração de pintura das casquinhas de ovos. Às 11h30min, também aos domingos, acontecerá à apresentação do teatro a Vida é Uma Peça, com encenações e histórias referentes à Páscoa.
O evento contava com leitura de livros, venda de produtos artesanais, brinquedos e outras atividades para as famílias. Por ser feita pela Secretaria de Turismo e Lazer, a iniciativa tinha uma proposta muito mais cultural e de lazer, do que um produto focado no turismo. Originalmente ela funcionava muito mais para ajudar no imaginário de cidade bucólica, atuando de maneira mais indireta.
De Ostermarkt para Osterfest
Quando Gladys é eleita vice-prefeita em 2009, após realizar alguns eventos como Feira de Páscoa, por sugestão da servidora Tina Ninow, a Feira de Páscoa passa a se chamar Festa de Páscoa (Osterfest). A primeira edição ainda é feita na Praça, mas em 2010, por sugestão de Tina, a prefeitura leva o evento para um lugar abrigado, a Casa da Comunidade (Gemeindehaus).
Tudo o que se conhece na atual Osterfest já estava presente: a decoração, a casa do coelho, venda de artesanato e produtos típicos como chocolate, cucas e bolachas, exposição com cartazes das tradições de Páscoa, a Osterbaum, as oficinas para crianças, pintura de casquinhas, coelhos, apresentações culturais, bandinhas. O público em 2010 foi de 1500 pessoas.
O evento se tornava um sucesso maior a cada edição. Quando fiz o primeiro vídeo da festa, há 12 anos, a cidade já começava a vislumbrar que esta festa mudaria para sempre a história de Pomerode e colocaria a cidade, finalmente, no roteiro turístico de muitos brasileiros.
A estranha privatização da Festa
Para elaborar esta matéria, ouvi muitas personagens importantes na construção desta história, com exceção do ex-prefeito Rolf Nicolodelli (2013–2016), peça fundamental para elucidar uma grande polêmica envolvendo a festa.
No site oficial da Osterfest, o grupo de empresários que mantém a Associação Visite Pomerode (AVIP) alega que, em 2015, a AVIP assumiu o evento por desistência do então prefeito. Foram mais de dez tentativas de esclarecer essa informação com Rolf Nicolodelli, sem sucesso.
Aliados do prefeito e antigos secretários afirmam que a intenção do prefeito era apenas entregar a operação do evento para a AVIP. Porém, naquele ano, tanto a associação quanto a prefeitura fizeram o depósito da marca. Na queda de braço, a AVIP levou a melhor e tomou para si o evento que deveria ser um patrimônio da cidade. Houve oficialmente mais três tentativas de anular o processo de patente da marca, sem sucesso.
Hoje, portanto, apesar de se vender como um evento promovido pela cidade de Pomerode, a Osterfest é um produto privado que usa verba pública, como a Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), além de inviabilizar um grande espaço público por dois meses.
Elogios vs críticas
Aos defensores da AVIP, é da associação o mérito pela festa ter se tornado extremamente conhecida em todo o país. Alegam que foi a partir de suas edições que vieram os recordes mundiais e a criação do ovo gigante como atração do evento. A AVIP pode afirmar que potencializou o evento, porque nunca saberemos como teria sido o andamento e o crescimento da festa se a prefeitura fosse a produtora.
Afirmar que a AVIP criou a Osterfest é completamente descabido e desconectado dos fatos e documentos. Afirmar que o sucesso só começou com as edições da AVIP também não condiz com a realidade. Em 2013, a cidade já era destaque no Jornal Nacional da Rede Globo.
O esvaziamento da cultura e a exacerbação do turismo
Essa não é uma invenção de Pomerode. Quando uma festa típica, com suas danças, artesanato e culinária, passa a ser oferecida em “pacotes” prontos, muitas vezes padronizados, chama-se isso de efeito de commodificação das tradições.
O turista quer “o que espera ver” — e o anfitrião acaba reproduzindo a mesma encenação ano após ano. Um dos efeitos mais nocivos e diretos é a perda da função social que a Osterfest tinha em seu início. Os rituais que antes cumpriam papéis de coesão social, ensino de valores ou transmissão de saberes tornam-se meros “shows” para turistas e suas selfies. A juventude local deixa de aprender a arte tradicional e passa a trabalhar no “set” turístico, não mais no papel de guardiã da cultura, recebendo e mantendo as tradições que deveriam passar de pais para filhos.
Espaços históricos são convertidos em cafés ou lojinhas de souvenirs. Imóveis centrais se valorizam e expulsam moradores antigos, esvaziando o bairro de vida cotidiana, em um efeito conhecido como gentrificação cultural. Acredite: qualquer morador de Pomerode já sente esses efeitos há alguns anos. Os aluguéis são muito caros, e comprar uma casa ou um terreno mais central fica impossível.
Além disso, a economia local fica refém dos altos e baixos sazonais do turismo. Incentivos públicos e privados concentram-se em infraestrutura para visitantes, não em projetos culturais de base. Hoje, os moradores já sofrem com esse descaso do poder público. A mesma padaria que é frequentada por turistas também é a padaria do bairro, frequentada pelos moradores, que agora passam a pagar o preço do turismo.
Hoje, a Osterfest pode parecer bonita aos olhos de alguns, mas, para outros — principalmente para moradores e descendentes alemães — ela se tornou um simulacro cultural. A turistificação esvaziou não só o evento, como a cultura. E nem preciso entrar no verdadeiro sentido da Páscoa, que certamente foi completamente obliterado do evento. O simbolismo da Osterbaum perde força e significado quando o único intuito é o próximo recorde.
Minha falecida avó Rosa (Michels) Dallabona tinha, nestas tradições, uma profunda paixão. Ensinou-nos desde pequenos a cultivá-las, mas era nítido que a importância desses eventos nascia de sua profunda fé cristã.
Lei Rouanet, AVIP e a cidade
Certamente o segundo ponto polêmico envolvendo a Osterfest, depois da sua privatização, é o uso de recursos públicos através da Lei de Incentivo à Cultura, pela Lei Rouanet, tão atacada e detratada pelo espectro político de direita (lembrando que todos os envolvidos neste evento são declaradamente ligados a a direita. Pomerode nem possuia candidatos de esquerda nas últimas eleições).
Na 17a edição da Osterfest, o valor solicitado através da Lei Rouanet foi de R$ 963.877,20, tendo arrecadado R$ 824.000,00. Será que as justificativas para a aprovação do projeto, são verdadeiramente cumpridas? Vamos a alguns trechos contidos nos documentos oficiais do projeto junto ao Ministério da Cultura – MINC.
“(…)realização de atividades culturais que resgatam o modo de vida, hábitos e costumes da comunidade pomerodense, marcando as tradições da celebração da Páscoa.”
“(…) Para a comunidade pomerodense a Osterfest tem fundamental importância, pois contribui com o resgate das manifestações culturais”
“(…) pintura de casquinhas de ovos naturais e a pintura de bolachas artesanais além de serem elementos importantes na celebração da páscoa para a cidade de Pomerode, possibilitam ainda o desenvolvimento social, econômico e cultural da classe artística.”
“(…) Vale destacar ainda que com os resultados atingidos com o evento, estes trarão repercussão positiva aos artistas, idealizadores e entidades públicas.”
“(…) A Osterfest – Festa de Páscoa além de envolver a comunidade local”
“(…) Por fim, com o resgate das manifestações culturais presetnes na celbração da Páscoa, o evento pretende-se fortalecer a importância da manutenção e preservação das tradições culturais trazidas pelos colonizadores; promover a autoestima da comunidade e portalecer o calendário cultural da cidade atraindo visitantes para os 34 dias de realização da Ostefest – Festa de Páscoa.”
* Todos os erros de português no texto, constam no texto original.
Muitas pessoas questionam a contrapartida financeira que a cidade recebe. Estamos, obviamente, tratando do retorno direto, pois o retorno indireto é bastante específico e não impacta a população como um todo, mas sim as empresas que possuem algum tipo de serviço utilizado pelo fluxo de turistas, onde o impacto social é praticamente inexistente.
Veja o que o projeto fala sobre a participação da Prefeitura de Pomerode e a Associação Visite Pomerode:
1. Prefeitura Municipal de Pomerode – terá como função no projeto apoiar e autorizar a liberação do pátio do Centro Cultural para a realização do evento.
2. Associação Visite Pomerode – AVIP – terá como função no projeto ser a instituição proponente do projeto, participará da total decisão do projeto, não sendo remunerada com recursos oriundos do projeto e ser o elo entre a coordenação e a Comissão Organizadora.
Apesar de afirmar que não será remunerada com os valores do projeto, a AVIP está viabilizando um evento, mantendo a parte mais cara do investimento, sob a viabilização de dinheiro público, sendo um evento da iniciativa privada.
Sensacional sua reportagem, nem falo como mãe, como pomerodense.
É lamentável que só pensa em dinheiro e em turismo. Muitos de nós moradores locais ganhamos com o turismo…mas ficam esses mesmos moradores no restante do ano????
Ótima reportagem de resgate dessa história que teve um início maravilhoso. Em 2009, quando passou a ser na Casa Comunitária, foi nossa 1ª participação (Raiz Atelier da Madeira). Alguns anos tivemos participação no Centro Cultural. Depois por motivos pessoais optamos por dar um tempo na participação das feiras. Parabéns pela pesquisa, pelos relatos. Pomerode merece saber como tudo começou e entender um pouco de como está, infelizmente. Abraços, continue seu trabalho com essa seriedade em destaque.