Como o grafite de Floripa escancara as contradições da ilha

Florianópolis respira beleza. Ilhas, morros, trilhas, praias intocadas. Mas entre as paisagens de cartão-postal, há muros que gritam. O grafite na capital catarinense não é só arte — é denúncia. É a cidade se olhando no espelho e encarando suas próprias contradições.

Uma das primeiras lembranças que tenho ao chegar em Floripa para morar e andar a pé pelas ruas do bairro Santa Mônica e me deparar com um camaleão perguntando: “Cadê o mangue que estava aqui?”.

Ali eu entendi que Floripa não era feita apenas de encantos. Fui pesquisar quem era o tal de Rizo e por que ele estava perguntando de um mangue.

Nos bairros do Norte da Ilha, as cores vibram nos murais de condomínios de luxo, muitas vezes financiados por empresas ou por projetos culturais higienizados. Já nas periferias, nos becos apertados do Mocotó, no Monte Cristo ou no Siri, o grafite brota como resistência: tinta como protesto, spray como manifesto. Uma arte que não pede licença.

O Santa Mônica tem essa contradição, aterraram parte do mangue para dar espaço para a concessionária Santa Fé Veículos, cuja construção foi iniciada em 1989. Mais tarde foi construído ali o Shopping Iguatemi, hoje Vila Romana.

É relevante mencionar que o Manguezal do Itacorubi, um dos maiores manguezais urbanos do mundo, sofreu reduções ao longo do tempo devido a diversas obras e empreendimentos na região. Projetos como a construção da Avenida Beira-Mar Norte, o antigo aterro sanitário da cidade, o loteamento que deu origem ao bairro Santa Mônica, o campus da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e o próprio shopping contribuíram para a diminuição dessa área de mangue.

Enquanto as propagandas turísticas vendem uma “ilha da magia” perfeita, o grafite revela outra face: o abismo social escancarado entre os que desfrutam da orla e os que sobrevivem nos morros. Nas imagens criadas por artistas como Driin, Gugie, Valdi, Vejam ou Rizo, vemos rostos negros, indígenas, femininos e populares que não estampam outdoors, mas ocupam paredes — como forma de existência.

Mais do que estética, o grafite aqui é política. É sobre a especulação imobiliária que devora matas e mangues, sobre a gentrificação que expulsa moradores tradicionais para dar lugar a condomínios de alto padrão. É sobre a destruição de comunidades em nome do “progresso”. E é também sobre a arte que insiste em resistir.

Nos muros do Morro do Mocotó, a arte urbana se tornou escudo e espada. Ali, os grafiteiros transformaram a paisagem marcada pela negligência em uma galeria pública que pulsa vida e identidade. Mas nem mesmo esses espaços estão seguros: o poder público frequentemente ignora, apaga ou coíbe a arte que incomoda.

O grafite de Florianópolis é, portanto, uma crônica visual da cidade partida. Ele registra a beleza e a dor, a festa e a fúria. Nas mãos desses artistas, o spray não é só ferramenta — é megafone. E o muro não é obstáculo — é palco.

Porque numa cidade onde tantos não têm voz, o grafite grita.

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